O ex-jogador do Sporting, Cristiano Piccini, que anunciou o fim da sua carreira em setembro, quebrou o silêncio sobre um dos períodos mais sombrios da sua vida. Em entrevista à La Gazzetta dello Sport, o lateral italiano revelou detalhes da luta contra a depressão que o acompanhou desde os tempos do Betis até à sua chegada a Alvalade, em 2017.
A história de Piccini é um retrato cru da pressão psicológica que muitos atletas enfrentam no futebol moderno — uma realidade muitas vezes escondida atrás dos holofotes e dos aplausos.
Do Betis ao abismo: “Li coisas horríveis sobre mim”
Piccini começou por recordar o momento em que tudo desabou. Depois de uma excelente época no Real Betis, uma grave lesão no ligamento cruzado mudou o rumo da sua carreira. “Rompi o ligamento cruzado depois de 18 jogos a titular, quando era um dos melhores laterais da La Liga. Voltei seis meses depois e, a cada pequeno erro, linchavam-me”, contou.
As críticas nas redes sociais foram o golpe final. “Escreviam coisas horríveis sobre mim no Instagram e no Twitter. Eu lia e sentia-me mal. Voltei de lesão, fiz três golos e três assistências e eles continuavam a atacar-me. Contra o Leganés marquei o 2-1 e gritei: ‘Calem a boca, seus filhos da p**’*. Leram os meus lábios e acabou aí”, confessou, mostrando como a tensão com os adeptos se tornou insustentável.
A obsessão pelas opiniões alheias tornou-se um ciclo vicioso. “Entrava no Twitter, escrevia ‘Piccini’ e tinha o dia estragado. Cinco podiam dizer coisas boas, mas eu só via os três comentários maus”, revelou.
A chegada ao Sporting: críticas antes mesmo de vestir a camisola
Quando assinou pelo Sporting, Piccini acreditava estar a começar uma nova etapa. Mas, segundo o próprio, os fantasmas do passado seguiam-no de perto. “Antes mesmo de chegar a Lisboa, já era um jogador de m****. Os adeptos do Betis diziam isso, e os do Sporting liam”, admitiu.
Na época 2017/18, sob o comando de Jorge Jesus, o lateral procurou reencontrar-se. “Aí disse chega. Ia jogar a Liga dos Campeões e não podia estar com esse veneno na cabeça. Desliguei tudo e fiz uma grande temporada. O Valencia comprou-me depois”, contou.
A mudança de mentalidade foi decisiva. Piccini encontrou em Alvalade o equilíbrio e o respeito que lhe faltavam em Espanha. Com a camisola verde e branca, conquistou títulos e ganhou o carinho dos adeptos leoninos, tornando-se um dos laterais mais consistentes da era Jorge Jesus.
Um corpo de aço e uma mente em colapso
Mas o sucesso desportivo não apagou as cicatrizes emocionais. “Fisicamente eu era um prodígio, não precisava de comer nem treinar bem. Nem dormia e treinava duas vezes mais do que os outros. Mas depois chegou a hora de pagar o preço”, confessou, referindo-se ao desequilíbrio entre corpo e mente.
A pressão para manter o rendimento e a imagem de “atleta perfeito” empurrou-o para o limite. “Durante muito tempo não consegui lidar com isso”, explicou. O desabafo de Piccini revela o peso que a exposição mediática e as redes sociais têm na saúde mental dos jogadores — algo que muitos clubes ainda subestimam.
O colapso em Valência: “Depressão, erros, dor, desespero”
A transferência para o Valencia CF parecia o passo natural para um jogador em ascensão. No entanto, um novo ciclo de lesões trouxe de volta os demónios do passado. “Depressão, erros, dor, desespero. Foi muito difícil. Passei muitos meses sem ser eu mesmo”, recordou.
A frustração transformou-se em irritabilidade e isolamento. “Super agressivo, irritado com o mundo, ninguém me suportava. Andava triste e deprimido, não tenho vergonha de o dizer”, afirmou.
O reencontro consigo mesmo: ioga, autoconhecimento e cura
No meio do caos, Piccini encontrou uma luz — e o ponto de viragem começou ainda em Lisboa. “Quando estava no Sporting, comecei a fazer ioga e encontrei um professor com quem conversar. Senti-me bem e isso fez-me sentir melhor. Comecei a partir daí”, contou.
O antigo lateral acredita que a honestidade emocional foi o segredo para a recuperação. “Quando entras neste ciclo de m****, não queres fazer nada, não queres falar com ninguém, não queres parecer fraco. Pensamos que somos super-heróis, mas não somos. Tens de ser honesto contigo próprio, tens de te libertar da m**** que tens dentro de ti”, desabafou.
O tabu da saúde mental no futebol
As palavras de Piccini ecoam num momento em que o tema da saúde mental no desporto ganha cada vez mais espaço. Casos recentes de jogadores como Dele Alli, Benjamin Pavard ou Gianluigi Buffon mostram que o sucesso e o dinheiro não são antídotos contra a depressão.
O futebol continua a ser um ambiente onde mostrar fraqueza é visto como sinal de derrota. O próprio Piccini confirma: “Não queremos demonstrar fraqueza, mas é fundamental.”
Este testemunho serve de alerta não apenas para atletas, mas também para adeptos — que muitas vezes esquecem que por trás do número na camisola existe uma pessoa com emoções, inseguranças e limites.
Análise: um exemplo de coragem e humanidade
O caso de Cristiano Piccini deve ser encarado como um ato de coragem. Num meio onde se valoriza a força física e a performance, admitir a própria vulnerabilidade é, paradoxalmente, um gesto de enorme força.
Ao expor a sua dor, o antigo lateral mostra que o futebol precisa evoluir emocionalmente tanto quanto taticamente. A forma como um atleta é tratado nas redes sociais, ou como a imprensa amplifica certos episódios, pode ser determinante para o seu equilíbrio psicológico.
É fundamental que clubes, treinadores e adeptos entendam que a saúde mental é tão essencial quanto o treino físico ou a recuperação muscular.
Conclusão: o fim de uma carreira, o início de uma nova mensagem
Cristiano Piccini encerrou a carreira em setembro, mas a sua história continua a inspirar. O ex-jogador do Sporting não deixa apenas a memória de um bom lateral direito — deixa também uma lição de autenticidade, superação e humanidade.
Ao partilhar o seu percurso de dor e recuperação, Piccini abre caminho para que mais jogadores encontrem coragem de falar sobre o que sentem, sem medo do julgamento público.
No fundo, o futebol não é apenas sobre golos, títulos ou contratos milionários. É também sobre pessoas reais, com histórias de luta, falhas e redenção — como a de Cristiano Piccini, o homem que aprendeu a vencer dentro e fora de campo.

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